Lições da bolha imobiliária espanhola para o Brasil – Fábio Portela
Para encerrar o ano, mais um ótimo artigo feito pelo Fábio Portela, o estudioso da bolha imobiliária de Brasilia. Leiam com atenção.
Autor: Jornal El Pais, tradução e comentários de Fábio Portela
Fonte: http://opequenoinvestidor.com.br/2010/12/licoes-da-bolha-imobiliaria-espanhola-para-o-brasil/
Alguns países europeus estão repetindo o caminho trilhado pelos Estados Unidos. Para estimular o consumo e o emprego, os governos destas nações facilitaram a concessão de crédito, estimulando as pessoas a adquirirem mais bens de consumo, incluindo carros, eletrodomésticos e… imóveis.
A Espanha é um dos países que, em razão dessa política, tem sofrido bastante com essa situação, que elevou, nos melhores momentos da economia, os preços das unidades imobiliárias a níveis inéditos. Muita gente lucrou, até que a demanda pelos imóveis começou a cair, já que pouca gente tinha condições financeiras de continuar a adquirir sua “casa própria”. Este é o lado mais triste de uma bolha imobiliária, e acredito que podemos aprender bastante com a experiência espanhola.
Em fevereiro de 2009, o jornal El País publicou um excelente artigo dos economistas Manuel Arellano e Samuel Bentolila, professores do Centro de Estudos Monetários e Financeiros, sobre a situação. Embora tenha sido publicado há quase dois anos, acredito que o texto apresenta informações preciosas para nós, que estamos vivenciando uma situação bastante parecida com a vivida nos melhores anos do crescimento do crédito. Por essa razão, traduzo o artigo para o site. Destaquei, com comentários e negritando alguns trechos, as passagens que julguei mais importantes.
Fonte: Jornal El País
Título: ¿Quién es responsable de la burbuja inmobiliaria?
Url: http://www.elpais.com/articulo/primer/plano/Quien/responsable/burbuja/inmobiliaria/elpepueconeg/20090222elpneglse_2/Tes
Uma geração de espanhóis perderá suas economias porque investiu em imóveis cujos preços estão despencando. Assim, não poderemos contar com o que esperávamos para a velhice e para nossos filhos. Muitos se endividaram tanto que agora não podem cumprir com suas obrigações. Além disso, nos especializamos em ser pedreiros, encanadores, eletricistas, caminhoneiros, vidraceiros, fabricantes de portas, vigas, gruas, lajotas, vendedores de hipotecas, corretores e várias outras ocupações relacionadas à construção; e agora, nossa experiência de trabalho já não vale nada e teremos que nos dedicar a outra coisa.
Além disso, o milagre econômico espanhol era uma miragem [nota minha: e o nosso? Será que vai pelo mesmo caminho?], porque nos dedicamos a construir casas que não construiríamos se soubéssemos o pouco que valeriam no futuro. Uma casa só vale para viver nela, e se ninguém quer fazer isso, então não vale nada. Compramos apartamentos que estão fechados ou aos quais vamos uns poucos dias por ano – não porque tivemos grandes desejos de comprar imóveis, mas porque pensávamos que eram uma reserva de valor para o futuro.
É importante destacar, ainda, que nossos bancos se dedicaram a financiar imobiliárias e construtoras que, agora, não podem pagar o dinheiro emprestado, o que poderia levar à falência das instituições financeiras. Nossas prefeituras desfrutaram de recursos insustentáveis graças à qualificação de terrenos e os gastos a que nos acostumamos acabaram. Além disso, também não poderíamos adquirir os carros que compramos, porque éramos menos ricos do que acreditávamos [nota minha: no Brasil, a concessão de crédito para a compra de automóveis também disparou nos últimos anos – em alguns casos, com financiamentos de 5, 6 anos]. Dessa situação resultou uma completa distorção do tecido produtivo.
Finalmente, quando este tipo de atividade insustentável parou, a economia entrou em recessão. Para começar a entender esse desvario, de consequências tão negativas, é necessário relembrar o cenário que seguiram os preços imobiliátios na Espanha, suas causas, sua previsibilidade e o que poderia ter sido feito para evitá-lo.
O crescimento do setor de construção.
O crescimento da construção civil tem sido altíssimo, na ordem de 5% ao ano entre 1996 e 2007. Entre 1998 e 2007, a quantidade de imóveis cresceu em torno de 30% do total, com um acréscimo de 5.7 milhões de unidades. No terceiro trimestre de 2007, a construção civil empregava 13,3% de toda a massa trabalhadora, muito acima, por exemplo, dos 6,7% da Alemanha e dos 8,5% do Reino Unido.
Vários fatores estimularam a demanda por imóveis. Destacam-se a expansão econômica (em parte devida ao próprio boom imobiliário) e à consequente queda no desemprego [nota minha: no Brasil, paralelamente ao crescimento no setor de construção civil, temos visto uma queda brusca no desemprego, justamente por conta das contratações no setor, como pode ser observado neste artigo publicado no Correio Braziliense], e à redução dos juros no financiamento imobiliário em razão da integração na zona do euro, de 11% em 1995 para 3,5% entre 2003 e 2005, que muitas vezes eram negativos depois que descontávamos a inflação. Além disso, a concorrência bancária facilitou o acesso e melhorou as condições do crédito imobiliário. Também aumentou o número de lares, em especial devido à entrada massiva de imigrantes, ao redor de 4.2 milhões entre 1996 e 2007. Por último, cresceu a compra de imóveis por famílias que não tinham interesse em residir neles, em uma magnitude difícil de calcular [nota minha: este também é o perfil de muitos compradores de imóveis no Brasil, que os adquire para lucrar com a valorização do bem no futuro].
A oferta respondeu à maior demanda, como mostram os dados anteriores, mas não a satisfez completamente, o que deu lugar a uma grande subida nos preços de imóveis: de uma taxa de crescimento anual de 1% entre 1995 e 1997, ela cresceu para 18% em 2003 e 2004. Em média, entre 1995 e 2007, a taxa de crescimento dos preços imobiliárias foi de quase 10% anual.
Na realidade, na medida em que os agentes têm expectativa de crescimento futuro dos preços de imóveis e a demanda se vê influenciada positivamente por ela, durante um tempo foi possível observar uma espiral de crescimento da demanda, da oferta e dos preços.
Houve uma bolha especulativa?
Uma bolha se caracteriza pela presença de altos volumes de transação a preços muito distintos do valor econômico fundamental. Não é fácil identificar essa situação, pela dificuldade de calcular este valor. Muitas vezes, uma bolha é identificada apenas depois, após um colapso brusco nos preços. Apesar disso, no mercado imobiliário, em razão de sua liquidez baixa, o colapso é mais lento que nos mercados financeiros e inicialmente se manifesta mais nas quantidades do que nos preços. Na Espanha, a venda de imóveis despencou em 2008, calculando-se que no final do ano havia entre 650.000 e 1.300.000 imóveis novos disponíveis no mercado.
Em todo caso, a valorização dos imóveis espanhóis entre 1997 e 2007 foi de 191%, segundo o The Economist, a segunda maior da União Europeia e superior à de países onde não se duvida da existência de uma bolha, como o Reino Unido (168%) ou os Estados Unidos (85%). No terceiro trimestre de 2007, o preço dos imóveis novos subiram 3,7% em termos inter-anuais, e o dos imóveis usados caiu 11,4%, em comparação com as respectivas taxas de aumento de 9,2% e de 7,5% do ano anterior. A rapidez e a magnitude da mudança dessa situação apontam para a existência de uma bolha.
Mais rigorosamente, os fatores fundamentais antes citados (a expansão econômica, a queda nas taxas de juros…) não explicam por si sós os preços a que chegamos. As estimativas disponíveis – por exemplo, as do Servicio de Estudios del Banco de España – indicam que os preços observados estavam muito acima dos níveis justificados pelos fundamentos econômicos. Esta supervalorização estava entre 8% e 20% já em 2003 e entre 24% e 35% em 2004. Assim, parece claro que uma parte significativa da inflação nos preços se deveu a motivos especulativos: as pessoas compravam casas como investimento porque esperavam que se valorizassem. Além disso, eram considerados um investimento seguro [nota minha: muitas construtoras alardeiam justamente isso em suas propagandas], quando comparado ao risco dos ativos financeiros revelado pela queda nas bolsas de valores em 2002.
Vale a pena assinalar que uma bolha não tem nada a ver com os estados de otimismo ou pessimismo coletivos que podemos associar a níveis de atividade econômica altos ou baixos, pela via de um mecanismo de expectativas autorrealizáveis. No caso de uma bolha, os preços não cumprem sua função de mecanismo de atribuição correta de recursos e produzem equívocos reais. Se a bolha é grande e duradoura, a mal atribuição de recursos de investidores, empresas e trabalhadores pode causar uma enorme destruição de riqueza real.
Era sabido que havia uma bolha?
Desde 2002, o Banco de España alertava sobre a supervalorização dos imóveis, ainda que tenha sido demasiadamente otimista sobre a probabilidade de que ela fosse “compatível com uma reabsorção paulatina e ordenada”, talvez por temer estourar a bolha. Em 2003, The Economist estimava a supervalorização na ordem de 52%. Em 2004, o FMI a situava entre 20% e 30%. Entre os economistas espanhóis, José García-Montalvo a estimava, em 2003, em aproximadamente 28,5%, indicando: “em resumo, é muito provável que o mercado imobiliário espanhol seja uma bomba-relógio esperando para ser detonada”. Não obstante, tanto políticos quanto empresários negaram repetidamente até pouco tempo que havia uma bolha [nota minha: o que também está acontecendo no Brasil].
Os responsáveis políticos estavam conscientes da bolha?
O programa eleitoral do PSOE de 2004 falava em “um novo modelo de crescimento mais sólido que o atual”. Seu candidato a presidente do Governo, José Luis Rodríguez Zapatero, dizia: “Como temos um modelo econômico econômico baseado na construção e na hipoteca, as famílias espanholas estão hoje mais endividadas do que nunca em sua história”. E o então coordenador do programa econômico do PSOE afirmava: “Essa política de aluguel que propomos (…) evita que as pessoas, ante a uma mudança de expectativas, passe a vender seus imóveis e a levar a uma queda de preços, o que seria catastrófico”. Certamente, o então ministro de economia do PP declarava: “A verdade é que estamos assentados sobre um ciclo de longa duração e com poucas incertezas. Isto é indiscutível. O importante é que é um modelo duradouro”[nota minha: aqui no Brasil, em diversas ocasiões nossos políticos dizem que o crescimento econômico atual é sustentável – mas será que estamos fazendo algo de tão diferente do governo espanhol?].
Poderia ter sido feito algo para evitar a bolha?
Estourar uma bolha é mais fácil (tecnicamente) se pudermos contar com a ferramenta adequada: a taxa de juros. É mais difícil quando não o temos, como na Espanha, que os deixou nas mãos do Banco Central Europeu (que durante muito tempo os manteve demasiado baixos para as necessidades da economia espanhola). Não obstante, pensamos que as seguintes medidas, orientadas a conhecer realmente o nível de preços dos imóveis e a reduzir as distorções fiscais que tornavam artificialmente rentável este tipo de investimento, teriam mitigado a bolha:
1. Melhorar a informação sobre os preços de imóveis. Diferentemente de outros países, na Espanha não existe informação sobre os preços reais de transação [nota minha: este também é um problema no Brasil, onde não há dados estatísticos confiáveis sobre os preços imobiliários]. Somente a partir de 2008 tivemos dados registrados provenientes de cartórios e apenas na forma de índice, e não de valor monetário (talvez por levar à suspeita de uma declaração dos valores escriturados por preços menores que os realmente praticados). Até então só havia séries oficiais do Ministério de Habitação, elaboradas a partir de dados declarados pelas empresas que avaliavam imóveis para a concessão de hipotecas. Por motivos óbvios, esta não é uma fonte confiável. E a política de informação oficial tem sido lamentável. Por exemplo, o Ministério anunciou, em outubro de 2004, que iria suspender a publicação dos dados relativos aos preços de imóveis – o que foi logo retificado. Em seguida, introduziu uma mudança metodológica que enviesava a medição dos preços em baixa. Atualmente, este Ministério não oferece nenhum dado de preços anterior a 2005! E em nenhum momento se atentou que o público estivesse consciente da possível supervalorização dos imóveis.
Sem embargo, seria possível contar com informação sobre o valor real das transações imobiliárias, por exemplo, assentada sobre as enquetes de lares realizadas pelo INE, ou levando a cabo uma pesquisa específica para este objetivo, e utilizá-la para corrigir a medição de preços.
2. Reduzir a dedução fiscal dos imóveis próprios no imposto de renda, que enviesa fortemente as decisões de investimento em imóvel, frente a outros ativos, o que, junto com a lei de arrendamento, favorece a aquisição da casa própria (81,3% dos lares em 2005 eram próprios) frente ao aluguel. Em 2002, 79,7% da riqueza bruta dos lares correspondia a bens imóveis, frente a 75,5% da Itália ou a 38,4% dos Estados Unidos. Em 2005, o percentual já era de 80%. Em 1998, o Governo do PP reduziu a altíssima dedução existente, mas depois não avançou por este caminho.
3. Aumentar a pressão dos fiscais da Receita Federal sobre as empresas sobre as empresas e as transações imobiliárias. Estimativas recentes situam a Espanha, entre 2004 e 2005, como o terceiro país desenvolvido com maior economia informal (20,5% do PIB), atrás da Grécia e da Itália. Este percentual se reduziu apenas em 2,2% desde 2000. Provavelmente, uma parte importante da atividade informal ocorre por meio do mercado imobiliário. O Sindicato de Técnicos do Ministério da Fazenda estima a evasão fiscal no setor imobiliário em 8.600.000.000 de euros anualmente (cerca de 0,8% do PIB).
Por que não se tentou desinflar a bolha?
Em primeiro lugar, porque a construção é um setor de mão de obra intensiva, o que é importante em um país com uma taxa de desemprego estruturalmente alta. Em segundo lugar, porque o aumento do valor dos imóveis favorece o eleitor mediano, que é proprietário de seu imóvel. E em terceiro lugar, porque o setor imobiliário paga muitos impostos para o setor público, nos níveis nacional, estadual e municipal. Por exemplo, em 2004 o setor sustentava 60% do orçamento (excluindo passivos e transferências correntes) da cidade de Valência e 50% de Madrid.
O governo do PP se equivocou em sua lei de liberação do solo de 1998. Acreditava que, com mais terra, aumentaria a quantidade de imóveis e os preços cairiam. Erro crasso. Imóveis não eram comprados e construídos porque eram baratos, mas porque eram caros e as pessoas tinham a expectativa de que ficariam ainda mais caros no futuro. Assim, a lei do solo pôs mais lenha na fogueira da bolha, desencadeando uma frenética atividade imobiliária graças à qual os governos locais encheram o tesouro municipal (quando não os seus próprios bolsos [nota minha: qualquer semelhança com o “Minha Casa, Minha Vida” e com os programas de incentivo ao crédito imobiliário não é mera coincidência].
De sua parte, a tentativa do governo do PSOE de fomentar o imóvel protegido e o aluguel, bem como a nova lei do solo de 2007, foram totalmente ineficazes. Na verdade, ela tem se limitado a aumentar a agonia da bolha.
Em suma, ambos os governos falharam em um ponto crucial:proteger os cidadãos de desmandos econômicos que destruam suas economias, seu emprego e sua prosperidade. É um fracasso com o qual se deve aprender para o futuro e pelo qual devemos pedir a responsabilização dos culpados.